terça-feira, 11 de maio de 2010

O CÃO



O cão arreganhava os dentes diante do portão daquela mansão. O enorme cão cinza de olhos claros parecia querer abocanhar o primeiro que aparecesse para invadi-la. Olhava os passantes com raiva por trás das grades do portão. O seu problema era ser animal. Foi especialmente preparado para defender a propriedade privada. Desde pequenininho davam-lhe um prato de comida e outras recompensas sempre que fazia a coisa certa. O bom e velho Pavlov tinha razão ao desenvolver a teoria do condicionamento. Realmente, o tal estímulo-resposta funcionava mesmo!
Era um cão treinado. Fosse um lobo e agiria apenas por instinto e não olharia as pessoas com tanto ódio. Ódio que lhe fora ensinado por seus donos, pessoas de muitas posses. Por isso, tinham medo de perdê-lo e ensinaram-lhe a cuidar de sua propriedade com zelo como se ela fosse sua. Ensinaram-lhe a ter raiva de pobres, pretos, pedintes, mendigos, molambos. Ensinaram-lhe a odiar qualquer ameaça a seu mundo cor-de-rosa.
Sempre que aparecia no portão um ser estranho, ele atacava. Sabia identificar pelo cheiro as pessoas amigas. Geralmente usavam perfumes franceses e tinham caras iguais, bem cuidadas. Ele via aquelas caras sorridentes, algumas cheias de maquiagem e estava acostumado com elas. Detestava as empregadas, jardineiros e os mordomos. Se pudesse pensar, talvez entendesse essa sua raiva. Estas pessoas lembravam-lhe a sua condição de subserviência, o que o deixaria profundamente irritado. Mas, naturalmente, não pensava. Animais não pensam.

Um dia, esqueceram o portão aberto e ele escapou. No início, bebeu o ar da liberdade. Correu, chafurdou na lama e revirou latas de lixo junto com seus velhos companheiros de espécie. Brigou, latiu para a lua, namorou muitas cadelas...
Mas...Se cansou da liberdade. Não tinha nascido livre, não tinha crescido livre. Toda sua vida viveu recebendo ordens. Quando saiu de casa, esperava que alguém o procurasse. Queria gozar ao máximo o tempo livre que tinha e pretendia voltar assim que fosse encontrado. Ele sabia que era um cão de raça que custava caro, por isso acreditou que seria procurado e encontrado. Andou perto da casa e teria voltado se não tivesse encontrado o portão fechado.
Não foi encontrado. Rondou em volta da casa, acabrunhado, arrependido de ter fugido, deprimido mesmo, com o rabo entre as pernas até que viu outro cachorro no quintal, naquele quintal que fora seu um dia! A dor foi muita e ele ganiu. Choraria se soubesse chorar, mas era apenas um animal sem valor que podia ser substituído por quem possui muito dinheiro. Que faria agora? Qual seria o rumo de sua vida? Ele se perguntaria se entendesse o que estava acontecendo. Mas era apenas um animal. Não sabia pensar.
Como um cão vira-latas, vagou, vagou e vagou, só e abandonado. Comia restos e sentia saudades do tratamento que tinha na casa dos ricos. Tinha cama boa, comida boa, não tomava chuva, não passava frio e só tinha que pagar por isso cuidando da casa deles, não deixando aqueles estranhos entrar. Estes seres com quem agora tinha que conviver e repartir a comida, seres nojentos que às vezes acariciavam-no, outras maltratavam-no. Não gostava deles, queria o cheiro de perfume francês da mansão rica, tinha nojo do mau cheiro dos pobres. A que ponto chegara! Pensaria, se pudesse pensar. Mas era animal. E animal não pensa.

E assim ele vagou por muito tempo sofrendo inúmeras privações. Até que um dia foi encontrado. Não pela família anterior, como ele esperava, mas por um rapaz tão só e abandonado como ele. O rapaz morava sozinho numa casa de um só cômodo num bairro sujo e fedorento da periferia. Não era a mesma coisa, mas já era algum conforto.
Tinha agora o que comer e onde dormir sem passar frio. Porém não se sentia agradecido ao rapaz. Achava que ele tinha feito sua obrigação, portanto não lhe fazia festinhas quando ele chegava, nem lhe balançava o rabo, nem mesmo quando era acariciado. Se pudesse raciocinar, acharia que ele apenas queria companhia e pagava por isto dando-lhe casa e comida. Mas não pensava, não era humano.
O rapaz estava desempregado e saia todos os dias à procura de emprego. Até que soube de um concurso para a Polícia Militar. Prestou-o e passou. Sabendo que o seu cão era de raça resolveu levá-lo para os treinamentos. O cão e o rapaz foram bem aceitos pela polícia, pois os dois eram cumpridores dos deveres e capaz de submeterem a disciplinas rígidas.
O cão logo engordou e ficou mais ágil, seu dono também. A sua cor cinza e o uniforme de seu companheiro, agora um soldado da PM, quase que se confundiam. Sabiam que tinham nascido para este trabalho.
O cão e seus companheiros policiais adoravam maltratar mendigos, pobres, pretos, molambos, crianças pedintes e casais de namorados. Ele percebeu que tinha ido ao lugar certo e chegou quase a ter amizade por seu dono, o rapaz que o tirou das ruas e o levou para ser um cão da polícia militar. Mas não podia sentir estes afetos, era apenas um animal.
Agora, sentia-se quase feliz com seu trabalho, tão parecido com o anterior, de proteger a propriedade alheia. O rapaz, com seu salário e apenas os dois para sustentar, já comia melhor. Havia até carne! Haviam se mudado para uma casinha maior e mais confortável e à noite ele dormia sonhando com perfumes franceses.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

D. Juan de Saias

Muito tempo depois da separação ela achou, numa caixa velha e cheia de coisas que trouxera da casa da sogra, entre cadernos de escola do ex-marido, uma lista bem amassada de todas as garotas que ele havia comido, namorado ou só ficado.

Achou engraçado, patético até, mas depois pensou melhor "talvez estivesse se prevenindo para que não acontecesse o que aconteceu com ela: não se lembrava de todos!!!!"
Quando tentou fazer a sua própria lista mentalmente, sentiu-se um Don Juan de saias, como sua mãe a chamava (e ela não acreditava). Perdeu a conta e resolveu anotar também. Começou a escrever:

2 Marcelos, Giácomo (primeiro beijo), Rogério (primeiro amor, primo de Giácomo), Toninho (primeira dança lenta, segunda, terceira...), Mário, Alberto, Pedro (in memorian), 2 Franciscos (um deles teatrólogo, o outro, só louco), Konga (não era uma macaca, era um homem com o qual botei chifre no Francisco louco),
2 Marcos, Mauro (gêmeo de um dos Marcos), Márcio (o homem mais feio que já existiu), Renato (desvirginei, então tive que noivar), 2 Fernandos...

Pensava “Como consegui me formar? Como conseguia estudar desse jeito? O que a minha mãe estava fazendo que não via isso?” e sorria.

Continuou: 2 Carlos, 2 Guilhermes (in memorian de um), 3 Eduardos, Roberto (o ex-marido), um menino na danceteria idêntico ao Roberto (nem perguntei o nome), Cláudio, Licor (garçom do meu bar), um japinha no carnaval (um açougueiro, de japonês só tinha o olho e o cabelo), o amigo do primeiro Fernando, o Milionário (não posso escrever o nome), o Músico (muito menos), o Desconhecido da net (nenhum nome me ocorreu), 2 Saulos, Flor–de– Lis (esqueci o nome, mas como sempre íamos a um forró que se chamava assim...), Chulo (codinome do professor de pós-graduação mais sacana do mundo), outro japa (dessa vez cientista, cortava grandes carnes em laboratório), Elias (um mulato), Felipe, Daniel, 1 Alex e 1 Alexei, Derico, Ernani, Alfonso.

A seqüência não foi bem essa. Mais ou menos.
Em determinados momentos quis engolir o mundo e as coisas andaram meio nubladas.
Com uns foram só beijos sem namoro, outros namorou e não transou, outros transou e não namorou.
Muito poucos pensou que amou.
Dois ou três sublinhou com cor-de-rosa ou vermelho-vivo: “lembrarei até o dia da minha morte”.
Uns com carinho e saudade, outros por maus motivos.
De alguns sentia até o cheiro, o sabor do beijo, a temperatura e textura da pele, o gemido, a voz.
Não se arrepende de nenhum. Apenas podia ter feito diferente.
Alguns, pensa, ainda podia estar fazendo, não fosse o último...
O último nome ainda não havia colocado. O último.
Tentou escolheu em vão a cor mais bonita da caixa de lápis.
Não havia cor suficiente, não havia cor à altura do nome dele.
O último nome da lista escreveu com uma agulha, depois de picar o dedo e molhar a ponta em sangue.

Ele:_________________________

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Grito


Alguém, por clemência, arranca-me a pele!
Preciso de ar, ficar em carne viva!
Preciso sair, jorrar, explodir
Já não mais aguento permanecer simplesmente
Tem-me sido angustiante a espera, o daqui a pouco
Eu vejo o mar e não posso mergulhar
Eu vejo o ar e não posso voar
Eu vejo a boca e não posso beijar
Eu vejo a dor e não posso chorar
Arranquem-me os grilhões e as correntes
Que minha alma pede passagem!

Foto: Cry por hoogmoet Todos os direitos reservados